segunda-feira, 26 de julho de 2010

Luíza


"Ela gozava de uma liberdade intermitente. Sonhava mas precisamente mantinha os pés no chão, fincados numa realidade que conhecia sobretudo. Ela era livre também por isso. Porque conhecia os passos. Conhecia os caminhos de dentro e por isso também gozava de uma prisão absoluta.

Ela sorria com os olhos mais doces do mundo e chorava um pranto que qualquer poeta se enterneceria. Ela era metade mulher. Mulher inteira para alguns que visitou como amante. Metade mulher porque ainda gostava das cantigas de roda e de saias rodadas. Ela acreditava na esperança e na sorte. Gozava, inclusive, de uma grande sorte. Tinha presságios sobre a vida e a morte e se enganava a escrever versos tão curtos quanto intensos.

Ela rezava, acreditava num deus de pequenas coisas. Acreditava acima de tudo em si. Na força gigantesca que o amor que havia dentro dela podia mudar o rumo das águas.

Foi assim com André. Quando se conheceram amaram-se como se ama nos romances. Ainda hoje se amam. Tamanha intensidade. mas um amor mais manso. mais humano, passível de erros. de verdades. de cruezas. Ainda sim amavam-se. não com o despespero das falas engaioladas em juízos de amor e morte, mas numa linguagem que se exalta a vida. a alegria descontínua de amar com a razão; sim, André e Luíza se amavam com a liberdade da vida. com o gozo profundo das pequenas consequencias cotidianas. Amavam-se em meio a toalhas molhadas sobre a cama, o choro dos filhos, o arroz queimado. a pasta dental sempre em cima da pia. Se amavam com a coragem do corriqueiro. Não precisavam de ilusão para que de amor suspirassem mais tarde. Suspiravam. Simplesmente porque amavam concomitantemente.

Ela portanto gozava de maior liberdade ainda. Porque amava e era amada. na mesma medida. na mesma certeza. E amar assim requer grandes olhos que enxerguem o amor.

Luíza gozava de sabedoria. Bebia em fontes inesgotáveis. a realidade, da qual servia de alimento e fome."

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Clara


"Clara era pequena, e tão grande! Clara conhecia o amor e esquecia dele. Clara sonhava e vivia o real, acrescentando-lhe fantasias....
Clara era um rio de águas cristalinas, tinha olhos de sol e nas mãos margaridas que conviavam a um passeio ao seu lado.
Clara, tão pequena e tão grande inventava palavras quando não conhecia o nome de seus sentimentos, ria se doía muito, chorava se apertado estivesse o coração de uma saudade-luto. Clara acreditava nos contos de fadas e nas pessoas, doava-se sem medo de entregar tudo, deixava que pissassem em seu território, as vezes nem mesmo humano. Criava asas de uma borboleta vermelha, voava para infinitos que jamais pensava. Voltava com o pesar de quem jamais quisesse ter partido.
Clara era doce. e sua douçura confundia-se ao açúcar que temperava o café da manhã. perecia de um amargo. que não sabia se do próprio peso do existir. tinha sonhos em que era apenas um livro. um paraíso de lindas flores do campo. Clara era puro sonho e seus terríveis pesadelos a acordavam madrugando choros e soluços. Tinha a solidão. Tinha fotografias de seus amores. tinha a sombra de seus amigos a segurarem as mãos assustadas. Tinha medo embora isso fosse sua matéria de coragem.
Clara não existia. Sua ilusão era permanente. "

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Beatriz


"Faz de conta que Beatriz não tinha angústias. Faz de conta que ela sabia sorrir desatando o nó da saudade e que não esperava anciosa a chegada dele.
Faz de conta que Beatriz não tinha tristezas e que suas mágoas foram transformadas em rios rasos de águas prateadas e que o esquecimento era desculpa para um consolo além-flores que ela plantava no canteiro lateral da casa.
Faz de conta que ela ainda era menina e que sua infância de balas e doces nascia num deserto de poesia e seca. Que seus olhos nãõ guardavam imagens de despedidas e que o brilho fosco deles era apenas porque era inverno e o sol não podia cintilá-los tão profundamente como na primavera.
Faz de conta que Beatriz sabia lidar com as palavras e escrevia cartas de amor aconchegantes, e que seu silêncio era apenas uma pausa demorada e nunca o fim de um começo inesperado. Faz de conta que seu amor não sofria abalos nem fome. Que o vazio que ora a devorava ora a vomitava para fora de uma existência humana era apenas a reticência que jamais terá significado preciso nos poemas ou nas fábulas.
Faz de conta que para Beatriz fazer de conta era mais fácil, mais sutíl, mais inteligente que deixar que a realidade falasse por seus gestos solitários e secretos, faz de conta que para ela fingir era menos doloroso que ser. E por isso continuar fazendo de conta era mais emocionante e proveitoso que viver de fato sem qualquer máscara. sem qualquer mentira.
Talvez por isso então é que todos os dias muitas vezes por dia ela começava a pensar : 'era uma vez...' e tecia sua fala e sua pele, seus sonhos e vivências, sua fome e seus dias segundo a fantasia que alimentava a sua única verdade; a realidade crua."

sábado, 17 de julho de 2010

Thereza


"Thereza queria um amor que não desse trabalho. Que ela não precisasse cuidar. Queria que ele apenas existisse e mais nada.
Não queria ter de inventar pretextos. Não queria ter que escrever cartas e dar telefonemas saudosos na madrugada. Queria o amor puro. Livre como o azul do céu da primavera. Livre como folhas soltas de papel em branco ao vento. Assim era como Thereza queria amar. Sem o compromisso da fala cansada, dos beijos roubados, das dores da ausência, do sufocamento da convivência. Thereza queria amar apenas. Deixar-se solta neste estado ímpar do amor. Quer a embreaguez do primeiro encontro. O tesão do primeiro beijo. Quer a multiplicidade do olhar. A sua negação e afirmação, ao mesmo tempo.
Thereza queria alcançar a graça. Queria amar de longe, desinteressadamente. Queria a aventura do esquecimento, a falsa sensação do poeta. Thereza queria saber fingir amar. Sem ter febre. Sem ter angústia. Sem se entregar ao trabalho meticuloso da química dos corpos. Ela queria apenas o amor. Queria apenas amar o invisível, o intocável, o improvável. Thereza queria o estado e não a ação. Amar era mais importante que ter por quem morrer desse amor.
Ela queria o amor de silêncio. A bruta-flor do querer. Queria apenas querer, não se tratava de necessidade. era apenas desejo. Amar sem ter trabalho. Amar sem assumir romances. Histórias de amor eram sempre chatas. Queria apenas descobrir o amor. Desfrutá-lo sem dividí-lo. Talvez amaria a si, criaria dentro dela uma outra, para que assim pudesse representar a figura falsa do ser amado. Queria amar sem ter motivos. Sem dar presentes. Seu querer estava em participar da essência do amor e não de seus desdobramentos.
Thereza queria amar. Amar como criança que não precisa de razão. QUe apenas ama. Como o vermelho que é só vermelho.
Inebriada de esperança Thereza assim esperava, sem saber que de amor já vivia. que de amor já se alimentava."

Laura


"Era tarde para amar sem que de amor, antes morresse. Isso a fazia pensar em quanto perigoso era amar sem medidas.

Laura abriu os olhos pela manhã e chorou quando debaixo do lençól não encontrou aquela mão silenciosa que a segurava pela cintura durante a noite. Chorou porque amava e de amor morria sozinha. Chorou porque de saudade passaria todo o outono. Sentiu a brisa fresca que entrava pela janela e mais uma vez chorou porque seu desejo jamais seria saciado em tempo tão pequeno quanto durou aquele romance.

Ela misturou-se a ele. Perdeu a identidade que lhe fazia mulher tão sozinha e tão doce. Antes dele não amou. Decidiu-se por amá-lo quando as malas dele já estavam feitas. Decidiu-se por se entregar quando ele já escrevia o bilhete da partida.

Ela ainda pôde escutar o ronco do motor do carro sumindo pela estrada. Acendeu um cigarro, então. Decidiu que escutaria o som da partida dele fumando como no dia do primeiro encontro. Talvez isso o trouxesse de volta por alguns instantes, ou o levaria para sempre.

Nunca foi mulher suficiente para amar. Coragem tinha. Lhe faltava o homem pelo qual esqueceria seu nome e a deixaria nua, no meio da cidade. Quando este chegou, ainda quando sentia as baroletas no estômago ele a deixou, talvez por acreditar que só os amores infelizes existem de fato. Somente aquele amor que não pode ser consumado. Talvez por covardia. Por medo. Por não querer participar do ideal romântico dela. Isso Laura jamais saberia. Ele não lhe dera qualquer explicação para o fim. Talvez porque não houvesse mesmo. Talvez porque o fim seja apenas isso, o fim. Mas para ela, tão encantada pelos finais felizes, fosse preciso uma resposta, um motivo único ou múltiplo para o fim daquela história que lhe parecia tão bonita e eterna.

Ela não quis levantar. Precisava morrer para que de vida fosse refeita. Fechou os olhos e de qualquer forma deixou-se morrer. Amar era morrer, isso era tudo que sabia do amor. "

domingo, 11 de julho de 2010

Ciranda de Mirabella


Mirabella amava Marina
que amava Felipa
por seus olhos serem tão doces.
Felipa amava Patrícia
que amava Fernanda
por suas curvas tão fartas.
Fernanda amava Amanda
que amava Marília
por seus sonhos tão bonitos.
Marília amava Sofhia
que amava Márcia
por suas palavras tão sinceras.
Márcia amava Elisa
que amava Vitória
por sua delicadeza tão incrível.
Vitória amava Susana
que amava Virgínia
por sua calma tão acolhedora.
Virgínia que amava Clarice
que amava Luana
por seus atos tão imprecisos.
Luana que amava Mirabella
que só tinha olhos para Marina
que não suportava Felipa
que mataria Fernanda
que envenenaria Amanda
que destruiria Marília
que arrancaria os cabelos de Sofhia
que assassinaria Márcia
que não engoliria Eliza
que abandonaria Vitória
que magoaria Susana
que esconderia Virgínia
que expulsaria Clarice
que esqueceria Luana
só para que Marina
pudesse amá-la
sem nenhum empecilho.

sábado, 10 de julho de 2010

JOANA


"O cigarro aceso, a coca cola, os livros espalhados na cama, as roupas ao avesso no armário que prometera arrumar dias atrás. Esta é Joana, a menina mais rebelde o mundo. A que de sonhos enfeitou os seus braços, a que de amor morreu tantas vezes a não se acreditar, a que de repente cresceu tão pouco que ainda cheirava infância e jujubas;
de repente, Joana, tão ativa, tão infâme, tão mulher, pensou que amava este para sempre. sem mesmo saber onde era que começava tudo que sentia. Acreditou nesse pequeno delírio, mastigou e engoliu com tanta paixão, que de repente, mesmo assim, depois de um tempo diregida, ainda sim morreu mais uma vez de um amor que não queria. que não esperava.
mas que sentia.
Quisera ela ter feito as malas, fugido, abandonado, antes que deveras fosse tarde, antes que deveras não houvesse nada, mas, assim, medida por medidas desconhecidas, assumiu o desejo de ficar, sem muito pensar se realmente podia. Ficou. Porque no amor de Joana é assim. Instaura e fica. Não pede permissão. Não se acomada com aquela ternura dos apaixonados. Necessita de pavor, de fúria. de medo; de arriscar qualquer consequencia. Tenta ela, nesta mistura popularizar o amor romântico. Romantizar qualquer gesto insconsequente. Qualquer palavra problematizada. Qualquer sentimento engasgado.
Sim, esta é Joana, uma única em tantas, camaas e camadas de verniz, camadas e camadas de sentimentos brutos, de horrores brutalmente enfeitados. Jarros sobre a mesa de um crime tão passional quanto ela.
Sim, assim é essa Joana, de cabelos vermelhos, de olhos arregalados, de pele tão clara a perder-se em páginas tão brancas de palavras tão sujas. Sim é esta a Joana, tão enfeitada e divertida. Tão cheia de alegrias. Tão devotamente acompanhada. Sim. É está que vos falo. Menina tão mulher a trepidar. a derrubar em penhascos certezas de uma vida inteira.
Sim, calado a espreitar Joana, vos digo:
- Joana, tão bandida, tão menina. Tão cúmplice. tão Joana."

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Primeira Pessoa


"Conheço pouco de mim. Porque nada fica imutável. Sou eterna transformação. Sou eterna confluência de rio e mar;
Pouco sei porque desconheço qualquer evidência. Qualquer verdade. Sou em absoluto uma variante. Transito entre o fantástico e o real. Não conheço outra maneira de existir. Figuro entre passado, presente. O futuro, aquele que vejo vindo num cavalo pela janela? Não sei. Sou de poucos fatos. Gosto do imaterial. Por isso também sou do amor. Acredito inventá-lo nos dias de frio.
Aprendi a andar descalço cedo. Descobri a liberdade que existe em caminhar. então também sou feita de estradas. caminhos que percorro por dentro. Vou me bordando conforme o colorido da linha. Penso ser a vida uma enorme colcha de retalhos infinitamente alinhavados. Os que nos deixam, puídos como os panos velhos, vão-se descusturando e deixando ausências.
Não me peça portanto definição precisa. Gosto do mistério. daquilo que nossas almas são feitas. Essência é uma palavra tão bonita! Por isso também não posso. Alinhavo meus quereres e minhas esperanças. Sou feita do pó. do barro. dos imprecisos avanços do sentimento. Dou-me assim, mistura, multiplicidade. Porque minha unidade é o máximo. Ser singular é também ser plural. e isso me inventa segundo todos os delírios. Sou feita e vou refazendo aquilo que em mim dói. A dor são poros por onde transpiram minha escrita. Por isso também sou muda, escrevo na pele qualquer evidência do meu espírito. Uma mudez parada a saborer o gosto das palavras sistematicamente. Acompanho sinais de cegueira absurda, vejo por dentro. oculta-me qualquer desprezar da realidade. meus olhos vêem de longe, ultrapassam qualquer disfarse.
Mas ainda sim, não me peçam definição. Excluo qualquer ponto final, sou das vírgulas e das reticências. Não me cabe em lugares rotulados."