sábado, 13 de fevereiro de 2010

Ponto de vista


Eu não tenho vergonha de dizer palavrões,
de sentir secreções
(vaginais ou anais).
As mentiras usuais que nos fodem
sutilmente
essas sim são imorais,
essas sim são indecentes.
Leila Míccolis

Instante**


No instante
do nada,
sou só corpo.
Peles,
corpos,
pêlos,
línguas,
dentes,
orelhas,
mãos,
cintura.
Êxtase.
Neste instante
do tudo,
sou só alma.
Gestos,
gostos,
cheiros,
súplica.
Neste isntante de tudo e nada
mistura infalível do grito,
sou só Gozo.

Calor e Calores


Eu sinto como se esse calor fosse devorar não só minha carne, mas a superfície que ela cobre.
Eu pensei que esses calores que vem com a lua, que emergem de qualquer lugar tão distante e tão próximo da pele, não me envenenariam a ponto de ao avesso me virar nas tardes de abril.
Esse calor, que vem queimando não só a palma da mão tão desaforada, tão atrevida por debaixo daquele vestido tão azul quanto seus olhos, que ele, tão apressado e cheio de sons, não fosse me tomar nos braços tão violentamente como um amante que chega de viagem.
Esses calores, tão verossímeis, tão irrigados pela língua tão maldita como tua palavra mais suja proferida, vem de uma fundura tão desumana que me obriga não só a rendição desse escárneo tão perigoso mas a deixar que sua mão, ainda gelada pela ansiedade do gesto primeiro, me devore antes do grito.
Calor a percorrer não só o colar, a calça, a unhas e os cabelos, calores a vasculharem sentimentos avessos e desmedidos. Ainda que em risco me ponha na ponte, salto ao abismo. Na tua boca a tábua. Calor a naturalmente sufocar minha verborragia desnecessária e calores tão viciantes a colorirem minha pele e a sua...em aquarela tão pornográfica quanto seu beijo.
Ah! esses calores de antes e de agora, que nascem e morrem no imediatismo tão profano do instante, vencem em mim batalha tão dionisíaca que ao fim chegamos no gozo.
Ah! esse calor de agora e de tão antes de mim, do gosto ou do gesto, tão preguentos quanto o gume do suor das suas costas, dobram sobre mim gotas de uma lágrima tão doce, quanto o eu te amo proferido no final da transa.
Ah! tantos calores a mergulhar em nossos braços. Tantas cores a embrulhar-nos em desejos que não nomeio, mas sinto.
Que nesta reza o calor e os calores sejam ainda mais evidentes em prece. Que nesta súplica se tornem ainda mais dolorosos e sombrios, que eles nos façam suportar a ausência e que nos defenda no encontro mais que evidente e fatal.
"Somos iguais em desgraça!!"

Vamos peder piedade, Senhor, piedade,
para essa gente careta e covarde!

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

O telefone*


O telefone tocou numa noite mais fria e estrelada que ontem. O cigarro estava aceso entre os dedos e a palavra amargava na garganta um fim sem começo. O baton já desbotado na boca fez que a língua o devorasse ainda mais depressa que antes.
A voz tão brisa do mar clamava por um amor que já havia nascido há tanto tempo que não me dava conta. O choro, solfejado no céu da boca fazia com que eu me sentisse tão cruel e injusta como nunca pude antes.
O telefone tocou naquela noite de estrelas cadentes. Os pedidos entalados, os recados esquecidos, as verdades inteiras, tudo começou a desmoronar sobre o tapete da sala que ainda cheira o desejo derramado dias atrás. A dor evidente, outro cigarro aceso, outra palavra de afeto. Desejei apenas um torrão de açúcar mascavo, mascaria como chiclete para que se não adoçasse a hora pelo menos me devolveria o seu gosto. Assim te recebo em mim. Tão doce, tão demente. Tão evidente. Tão pulsante que não pude deixar de alimentar ou frustrar mais um não dentro de mim. No dicionário verborrágico do amor, desse amor tão delicado e desmedido, não cabe qualquer negação. Estaria contrariando a vida. A ordem. O progresso.
Ainda sim o telefone tocou. Palavras surdas soldavam o coração palpitante. A declaração empurrava ainda mais para o precipício essa corrente de afeto que se fez de açúcar em nós. A diferença entre tantos outros é que o salto é duplo. Estamos juntos. Ligados seja como for, para onde for. Estamos condenados. E condenação, esta redenção, juramos juntos. Ainda que o silêncio de um gemido tenha sufocado a palavra não entendida.
O telefone tocou. No meio da noite escura quanto meus olhos ainda buscavam os seus atrás da porta. A espreitar-me pela janela ainda aberta a tentativa de um golpe. De uma farsa. Sua fala tão quente a me fazer depois de um tempo estar nua. Sempre estou. Sempre reflexo do seu avesso. Sempre horas a fio nos afastando e presentes tão evidentes nos tornando um. Eu ainda não esqueci todas as promessas. Todas as juras. O amor tem dessas peças; é primordialmente um orador. E eu me derramo na pauta de seu dircurso tão violento e surdo.
O telefone tocou e eu chorei por horas. E tentei negar alguma coisa que já passou há muito apenas de uma afirmativa.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010


Eu vim de infinitos caminhos,e os meus sonhos choveram lúcido prantopelo chão.
Quando é que frutifica, nos caminhos infinitos,essa vida, que era tão viva, tão fecunda,porque vinha de um coração?
E os que vierem depois, pelos caminhos infinitos,do pranto que caiu dos meus olhos passados,que experiência, ou consolo, ou prêmio alcançarão?
(Cecília Meireles)

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Lilás...

No som Alquimia
e um incenso de Uva, para delirar!*
No céu da boca, um caramelo, talvez para excitar!**

(...)


Aliás, eu devia me deixar levar pelas formigas. Seria lenta a viagem. Observaria os detalhes. Poderia ver com olhos de amor e de fome. Poderia conhecer o cheiro mais doce das maçãs e das uvas. E talvez sentir o gosto mais áspero de algns sentimentos que me rondam tão noturnamente como a lua. Tocaria com a ponta dos pés as flores mais altas e assim nomearia a liberdade. Estaria dilatada e retornaria ao estado primeiro da matéria, o barro.


Aliás, eu deveria amar com o coração mais duro e com olhos mais atentos. Seria grande o caminho a percorrer e daria tempo de descobrir todas as faces desse amor que me rouba tanto para dentro das coisas e me faz escapar de mim com tanta precisão que não consigo descrever, mas sinto. Cavalgaria sobre a manhã de olhos fechados e deixaria morrer em mim todos os raios vermelhos do sol. Talvez mergulharia minhas mãos sobre rios insondáveis e experimentaria deitar sobre mim num campo de flor lilás, uma ou muitas, não importa, eu estarei morta.


Aliás...eu devia caminhar num deserto de flores do campo, e de repente ser resgatada por aqueles olhos tão azuis como um céu de primavera parisiense. Assim estaria livre, à medida que me prende. Essa enfim é a liberdade que desejo desesperadamente. A primavera escreveria seus versos e eu, solta num vestido laranja, dançaria sobre as pragas. Isso levaria a um outro delírio, que depois conto, agora não, ainda é cedo!


Aliás, eu deveria desejar só as coisas simples. O café da manhã, o beijo mais doce na boca, o cigarro aceso entre os dedos. O olhar a me invadir e libertar, assim, tão despreocupado quanto apaixonado. Deitar sobre aqueles ombros tão grandes e esquecer de carregar o peso, esquecer que a dor embora latejante é apenas fagulha. E que o amor transcede a loucura.



Aliás, eu devia apenas me deixar levar por todas essas canções, esquecer o significado da palavra pronunciada e me perder tão doidamente na imensidão do silêncio, que no fundo está sempre povoado.

Aliás, eu devia me calar, para que você pudesse ler meus olhos.

Me faça doce!***

Que seja doce de qualquer forma, de qualquer jeito. Que seja simplesmente doce a fome que me torturar por tantos dias e tantas noites, porque assim te amarei mais, ainda que dolorosamente.
Que seja doce porque de amargo basta-me o chocolate da caixa escondida na gaveta tão propositalmente quanto a lágrima que caiu ontem à noite.
Que seja doce porque desse veneno quero beber até a última gota
e do seu beijo quero sugar a vida que dilata e reflete não só o amor que me oferece,
mas também a súbita sensação de ser sempre o último.
Que seja doce para que eu possa passear sobre você dias à fio
como formiga a doidamente devorar tão devagar o doce que esquecido ficou sobre a mesa
ainda que você esteja sobre a cama.
Que seja doce para que eu me esqueça do amargo tão evidente dos meus lábios
que te cativam tanto a fantasiar gozos tão profundos e delirantes,
ainda que depois se perca no imenso vazio do meu tudo tão complexo.
Que seja doce porque sabarei emprestar-lhe todos os outros sabores que você não conhece
a começar pelo gosto tão sufocante da minha palavra tão destemida e nua,
ainda que durante todo o ato eu apenas deixe escapar gemidos.
Que seja doce então
para que eu possa me lembrar da fissura toda que me causa
a fazer de mim dependente tão irracional da tua transa,
ainda que um dia você se esqueça disso e vire a última esquina da minha vida e nunca mais olhe para trás com esses olhos já tão vibrantes e enfeitiçados pela vida que te ofereço em doses.
Que seja então ainda mais doce,
para que se um dia tiver fim,
qualquer bala ou ácido ingerido
sobressaia todo o gosto que você deixou em mim.


Obsessão!

Vibro alucinante na palavra proferida.
Construo consciência a partir do verbo.
Não concebo a vida sem esse exercício tortuoso de ouvir a vibração sufocante das palavras.

Molho-me de uma chuva inventada
e em instantes estou absolutamente ensopada de palavras tão vivas como as gostas a me escaparem por entre os dedos.

Sofro do pior bem e do melhor mau de cada um.
Porque sugo de qualquer forma a essância primordial da matéria que faz palavra.
Afogo-me na bondade do gesto humano, como faço dele sacrifício de criação.

Aproprio-me não só do instante,
mas do olhar.
Ocupo não só o espaço,
mas a existência.
Debruço-me não só na vida,
mas na morte.
Porque fazendo isso
qualquer hora esbarro no mais tangível e no menos provável
e dou de cara com esse fantasma tão peçonhento
que é o verbo ainda não terminado!

Declaração!

A outra parte que existe em mim, sou eu pelo avesso, a começar pelos olhos.
A outra metade que me arrasta a esse avesso, fuma sem escrúculos e me diz palavras de um amor tão bonito quanto o céu de abril.
Essa outra parte, fumante e apaixonada, de cabelos um pouco dourados e de uma pele mais que marfim, costura minha pluralidade com a linha mais colorida da liberdade.
Esse outro avesso sobressai a medida que de mim se apropria, não como espaço, mas como sentença. Rouba de mim tudo aquilo que acha bonito e me devolve ainda mais enfeitado.
A outra parte toma um café amargo que distoa do gosto de seu beijo, gosta de inventar as coisas com jasmim e me propõe comer não só o chocolate com damascos às duas da manhã, mas envolve-me com isso numa aura de desejo e entrega que não conheço resposta negativa para afirmar mesmo que baixinho ao telefone.
Essa outra parte me escreve cartas de amor a todo instante quando de mansinho vem ocupar um espaço que já é seu e que eu insisto em mostrar com certa agressividade doce que ainda precisa andar muito para me alcançar.
Esse avesso que reflete reverso, abraça-me com um tesão a exalar pelo ar não só a vontade, mas a potência que existe por trás desse desejo de me ter tão viva quanto seu desejo. E isso me faz tremer a cada investida desumana e perigosa. E que me arrasta a um delírio cada vez maior e mais intenso.
Essa outra parte, andante como meu espírito, acendeu em mim fogueira tão dionisíaca que hoje, ainda com resquícios apolínios, me faz querer me afogar. Esse mar tão grande que vejo e sinto nos teus braços me recupera de mim e dos outros tão assustadoramente como se eu a cada dia nascesse de novo.
Essa parte, tão silênciosa e falante, tão quieta e atuante, tão doce e pulsante é você, você, você!

Eu te amo!