quarta-feira, 28 de abril de 2010

Fragmento de um discurso amoroso I



"...Não se preocupe se tudo que te digo for quase incompreensível, sentir ultrapassa entendimento. É por isso que mais uma vez digo; interpretar é inventar segundo minha vontade. Portanto escolho minha verdade.
Nossos fatos não passam de invenções. Precisamos interpretá-los para que possam existir. Assim como faço. Lanço a minha luz sobre tua fala e eis que ela vive. Não dou à mínima para suas mulheres nuas. Tenho a minha nudez escancarada. Por isso aprendi a lição inexistente daquela noite. Porque dei voz às mudas coisas que você não percebia. Porque dentre elas fui a única a acreditar na alma das ações daquele momento.
Sobre mim tu despejavas seu egoísmo, eu em ti era só fúria. Egos dilatados, absolutamente excitados e no fim um orgasmo libertador. Depois de você não pude fazer amor sem chegar ao extremo do sentir. E neste momento o mais impressionante é que não sentimos nada. Apenas a ausência de qualquer sensação e isso também deve esbarrar na morte, de qualquer forma, de qualquer jeito, porque por algum motivo o sexo é estar à beira da morte. É uma entrega desmedida, como morrer.
Vejo seu cigarro queimando. Não sei se você está lendo o jornal. Ouço a música suave que grita no silêncio da sua sala. “- Por que o silêncio é tão mortal para você?” “- Ocupa teu silêncio com tua existência!” Ordem. Misturo o caos com a ordem. Não sei qual de nós é mais invisível agora. Não te alcanço somente me aproprio das suas coisas, que voltam por qualquer motivo a existir para mim. Alguns discos empilhados em ordem alfabética. Alguns pincéis novos ainda embrulhados, guardados na última gaveta da escrivaninha. Alguns cigarros metodicamente dispostos à mão. O cesto com os jornais, o jornal do dia. A xícara vazia. O cheiro do verniz que vem lá do segundo andar. As telas frias. As cortinas cerradas. O frio costumeiro do ateliê. Suas mulheres resmungando qualquer barulho. Assombro-me!
- Por que estou a observar-te como se por trás de uma janela?
Não temos mais idade para segredos, então me abro!
Olho para o estalar das coisas e ainda me impressiono. Questiono de fato a existência delas o tempo todo e quanto mais me aproximo da natureza das coisas mais entendo que nosso desejo de construí-las extrapola as medidas do humano."

Um comentário:

  1. O fato é dado e não muda...todavia o que se muda são suas interpretações, existem centenas delas em relação ao mesmo fato, mas isso não quer dizer que a interpretação dos fatos deva ser relativista...Neste sentido é perfeito sua colação no segundo parágrafo.

    "O apetite do ser humano não se contenta dentro de nenhum limite; eseja sempre ultrapassar o ponto em que se encontra" (Boccaccio)

    Belo fragmento!

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