quarta-feira, 28 de abril de 2010

Fragmento de um discurso amoroso II



"...Estou tentando ser razoável. Apesar de não ter certeza se no amor somos capazes de medir. Sim. Eu disse no amor. E por que não seria? Nesta hora não podemos julgar. Uso apenas a distração. E estar distraída é amar com enorme surpresa.
O amor passou por aqui. Deixou vestígios nos fatos. Impregnou na roupa e nos cabelos, nas páginas, nos olhos. Calou a lucidez da interpretação. “- Será que em algum momento fui clara?” e de alguma forma se alastra por suas telas e tintas.
Você pode ouvi-lo? Você pode reconhecê-lo vasculhando suas coisas? Ainda que resguardado pela cólera, pode senti-lo? Espero que não guarde um trunfo na manga. Lembre-se que estou apenas me confessando, estou livre do julgamento. Nem empreste juízo a minha fala. Estou louca.
Ouço o amor dizer seu nome. Vejo que ele descortina a bondade e desajeitado ele ocupa os espaços das coisas vazias. Provo do seu veneno. Arrisco-me. Como sempre fiz, estando ou não ao seu lado. E de novo me assombro. O amor comeu minha sanidade, ensinou-me a tranqüilidade de seus gestos e convidou-me a cometer um assassinato.
Não sacuda a cabeça, desaprovando ou embaralhado, lembre-se que lido agora apenas com a invenção. Neste caso é simples, preciso apenas cortar o cordão umbilical. Ou os pulsos. Isso depende da lente que se olha agora.
Vejo que o amor com sua fome invade teus olhos também, sinto que comunga da mesma sensação. O gosto de morangos na boca, talvez algumas borboletas no estômago e as mãos trêmulas. Encaro tua face desfigurada. Seus olhos não mentem. Minhas mãos despencam a ribanceira da maldade. Meus olhos choram e a lágrima, fogo, lava ou queima. Talvez a dualidade seja o caminho menos doloroso e salto!


***


Os sinais eram claros, poros em erupção, a língua amassada, os dentes afiados propondo o acidente. Assim me senti diante da ameaça do amor. E mesmo assim me arrisquei, me propus ao vôo, quis conhecer a profundeza. Não sei se de lá voltei outra. Sei que troquei a lente. Mas entendo que não só no amor, acho que o único estágio que é absoluto é o da mudança. Estamos sempre precisando trocar a lente, estamos sempre em mudança contínua. Assim me rendo, ponho-me a disposição do precipício e me atiro.
Vejo no amor pessoas mutiladas. Auto-flagelação. Talvez certa demência necessária. Portanto uma grande distorção na lente. Ou do olhar. Precisão esta que não conheço hoje depois de ter tido o amor como visita. Há certo deslocar das coisas. Ele é uma visita que ocupa e dilata os espaços, causa violência surda.
Aqui, ainda da janela, vejo-te na organização caótica que se instalou depois da visita. Papéis espalhados pelo carpete. Cigarros apagados com força em cinzeiros de barro. Os discos revirados sobre o sofá que agora pouco estava intacto. As telas que frias parecem tremer pelo estágio de queimadura. Vejo você num canto, tentando acender o centésimo cigarro, rabiscando nas paredes traços que apenas ocupam ainda mais o espaço. Será assim o dia da tua morte? É necessário morrer para que o amor se instale?
“- O que você ainda pode ver?”
- Vejo nós dois. Mutilados."

2 comentários:

  1. incrível como conseguiu adentrar em cada detalhe...cada bituca jogada ao chão...cada...!

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  2. Oi Mell!

    obrgada por tua 'entrega' linda! E esse cantinho aqui é bem intenso...hein!

    * o e-mail: rlscarlett@hotmail.com

    bjocas flor!

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